Marcilia Rodrigues - 13/09/2011 - 16h49
O inquérito policial não é um tema muito aprofundado nos estudos
processuais penais. A grande maioria da doutrina prefere conceituá-lo
como procedimento de caráter administrativo, meramente informativo, no
qual não há contraditório, não havendo para alguns nem sequer direito à
defesa. É simples peça preparatória.
Todavia, ele pode restringir um dos mais importantes direitos
fundamentais, que é o da liberdade. Com efeito, a prisão em flagrante e a
prisão temporária são decretadas e mantidas em seu decurso e a primeira
ainda é efetivada por delegado de polícia, numa das poucas exceções
constitucionais à obrigatoriedade da determinação de prisão somente por
autoridade judiciária.
Estando em andamento no Congresso a discussão sobre novo projeto de CPP
(Código de Processo Penal), uma reflexão mais aprofundada sobre
inquérito policial deveria vir à tona, principalmente levando-se em
conta o destaque de todas as questões relativas a direitos fundamentais.
No presente texto, pretende-se refletir sobre outro direito também de
ordem constitucional, claro, não da mesma esfera que o da liberdade, mas
bastante relevante a ponto de estar no capítulo das garantias
individuais: o direito à liberdade.
No inquérito policial também pode haver restrição ao exercício desse
direito. Trata-se da aplicação do artigo 6º do CPP, o qual determina a
apreensão de objetos que tiverem relação com os fatos investigados, além
da coleta de todos os elementos probatórios e a exigência de exame
pericial naqueles em que houver a necessidade de questionamentos e
esclarecimentos de sua relação com a materialidade do crime apurado.
Obviamente, realizada a instrução probatória, com a análise de todos os
laudos, os bens apreendidos poderão ser liberados, com exceção daqueles
que configurarem instrumento do crime, produtos ou proventos deste,
conforme orientação do artigo 91 do Código Penal.
Para a restituição desses bens apreendidos há um conjunto específico de
regras, constante dos artigos 118 a 124 do CPP. Em resumo, a orientação
legal é de que tais objetos podem ser entregues mesmo no decorrer do
procedimento se já não interessarem mais ao andamento do feito na fase
policial ou judicial. Via de regra, após a perícia respectiva. Em casos
que haja dúvida sobre a titularidade de tais bens, deve ser realizado
procedimento judicial incidente, no qual a propriedade do bem é
examinada para fins de devolução.
No aspecto legal, o procedimento deveria ser bem simples, pois bastaria
ao titular comprovar a propriedade e o objeto ser-lhe-ia devolvido.
Mas, como é a prática? E, como é a prática no inquérito policial?
Como dizem alguns, na prática a teoria é outra. Isto nunca foi nem é
verdade. Toda teoria tem de retratar a realidade. Se não o fizer é
porque a teoria está errada. Esta é a motivação deste pequeno artigo.
Não há propriamente uma teoria sobre bens apreendidos na fase policial.
Não se pretende criar uma aqui, mas sim levantar algumas questões para
colaborar com o exame do tema.
O que se vê na prática são apreensões intermináveis, porque a perícia
nunca se resolve ou, de outro lado, não a entrega ou a restituição, mas o
depósito de bens. Quem milita na área criminal, principalmente no
âmbito policial já deve ter visto um documento chamado “auto de
depósito”.
A rigor, legalmente falando, este documento não existe no CPP.
Obviamente, por ser considerado um sistema, os institutos jurídicos
transitam e o depósito é previsto na esfera civil e, portanto, aplicado
no plano criminal.
Porém, isto gera uma série de deficiências, tanto no andamento das
investigações, quanto para a estrutura administrativa policial, além
principalmente dos problemas de usufruto do bem por seus titulares. Quem
tem o depósito, não pode usufruir plenamente da propriedade. A pergunta
que se faz é: será que isto é justo com o proprietário?
Para visualizar melhor, cita-se um caso prático, usado como exemplo em
salas de aula e palestras. Um caminhão tanque, plenamente legalizado e
documentado, dirigido por motorista adequada e corretamente habilitado,
contratado somente para o transporte, conduz como carga combustível
adulterado. Há a apreensão, obviamente, do líquido e do veículo, pois o
primeiro não poderia ser retirado do segundo, salvo se a polícia no
momento da apreensão dispusesse de transporte adequado para a carga.
Segundo a lei, a carga deveria permanecer apreendida e o veículo
liberado, uma vez constatada a não relação direta com o suposto produto
criminoso. Mas, como muitos sabem, nossas delegacias não possuem
equipamentos adequados quase para nada e, logo, não possuem locais para o
armazenamento de tais produtos. Assim, o delegado é obrigado a liberar
tanto o veículo como a carga, sendo que esta deve ser periciada. Que
costumam fazer os delegados? Depositar os dois, veículo e carga.
Mediante auto de depósito, condicionando a propriedade do veículo e
permitindo a circulação da carga até para deslocamento ao local onde
será periciada, a autoridade policial “libera” os bens apreendidos. Com o
depósito, a carga não pode ser comercializada, mas, e o veículo? Por
que deve seu titular ter seu direito restringido até o fim do processo?
Deverá ele se submeter aos procedimentos do artigo 118 e seguintes do
CPP? E o direito constitucional de liberdade?
A questão é delicada e pode ser apresentada genericamente pela
pergunta: que fazer no inquérito policial quando um objeto que
caracteriza o crime se relaciona intimamente apenas no plano
instrumental da realidade com outro que nada tem com a materialidade da
conduta delitiva?
O problema ocorre na prática e a discussão sobre o novo CPP é o momento adequado para tratar dele.
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